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Exposição da artista Altina Martins
Que haja luz, em vez de obscuridade #2
A exposição Habitat e a poética dos 5 sentidos da artista visual Altina Martins vem no seguimento da apresentação da instalação Narval, no museu em maio de 2022. Como nos disse a artista a sua inspiração para a realização destes trabalhos surge depois de uma visita sua às tapeçarias da tenture La dame à la licorne[1] no Museu de Cluny, em Paris em 1995. A sua surpresa ao ver um dente do narval macho, que pode atingir 3m e que remete para o chifre do unicórnio que simboliza a pureza e o poder espiritual foi o mote para a construção desta exposição.
Ao longo do seu percurso como artista visual, Altina Martins tem vindo a experimentar diferentes formas de trabalhar a luz e nesse seu caminho procura também a reconciliação do nosso planeta. “A comunhão de eus secretos baseada em revelações mutuamente estimuladas pode ser o núcleo do relacionamento amoroso. Pode fincar raízes, germinar, desenvolver-se dentro da ilha autossustentada, ou quase, das biografias compartilhadas.”[2] Os trabalhos agora apresentados transmitem também a sua preocupação ambientalista e estão inseridos numa estética de resistência.
Citando a artista, “esta exposição representa o nosso tempo, o nosso habitat, o tempo da ecologia, a nossa preocupação com o universo, o nosso lugar. No fundo representa aquilo que eu gostaria de viver e ainda não vivi. É como se eu sonhasse com sítios que quisesse habitar.” Estão reunidas 15 tapeçarias que representam o trabalho que a artista tem vindo a realizar. A exposição encontra-se em processo de construção, de investigação, na procura incessante na qual Altina se posiciona, como um ser volátil e sempre em movimento. É uma exposição que evolui como uma coleção, sempre incompleta, que reflete a impossibilidade da sua conclusão, em permanente dinâmica física e espiritual. “A arte é parcela de uma transação dialética com a consciência, apresenta um conflito mais profundo e frustrante. O ‘espírito’ que busca a corporificação na arte choca-se com o caráter ‘material’ da própria arte. A arte é desmascarada como gratuita e a própria concretude dos instrumentos do artista (e, em particular, no caso da linguagem, sua historicidade) aparece como um ardil.”[3]
“Quando acabei a tenture Pátria Mundo,[4] achava que nunca mais tecia, mas a pesquisa dos materiais, levou-me a continuar e então descubro o fio de prata, esse metal dúctil e subtil que me permite esculpir, como nenhum outro, aliado à resistência do papel, conjugando outros e ainda os materiais nobres, como o algodão e a seda.”
A descoberta destes novos materiais leva a Altina a encontrar novas atmosferas, ambiências e habitats, cria a peça Plâncton porque brilha, a Aurora Boreal porque é florescente, a Baleia, porque o inox dá a textura da pele dos cetáceos, entre outras. São os materiais a essência, a força da peça. “O trabalho, ao contrário do labor, não está necessariamente contido no repetitivo ciclo vital da espécie. É através do trabalho que o homo faber cria coisas extraídas da natureza, convertendo o mundo num espaço de objetos partilhados pelo homem. O habitat humano é, por isso mesmo, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. E um habitat cercado de objetos que se interpõem entre a natureza e o ser humano, unindo e separando os homens entre si.”[5] A materialização das ideias está nos materiais e na sua apropriação como ato da criação artística.
A exposição vai para além da tapeçaria, é uma exposição de escultura, Altina envolve-se emocionalmente pois não se trata mais de um processo orgânico, mas de um percurso de vida. “Tal como a encontro em minha lembrança de revelação infantil, ela não é uma construção: está fundida e repartida em mim: aqui um cómodo, acolá outro cómodo e um fundo de corredor que não liga mais esses dois cómodos, mas está conservado em mim como um fragmento.”[6] Trabalhar a tapeçaria a partir de fragmentos de memórias, sobre a sua essência, sobre o que representa e que quer representar, é o lugar onde Altina se exprime, se emancipa e se exalta, assim como Baudelaire, “pois o que importa é que a representação alegórica do mundo lhe ofereça um refúgio contra a realidade da existência separada, que lhe seja capaz de fornecer as armas para o combate que se trava no plano humano ou, se se prefere, no plano poético.”[7] Aqui materializada na reinvenção do viver em equilíbrio connosco e com todos os seres vivos.
Se a artista perpetua o dom da luz nas suas obras, é porque tem a capacidade de nos oferecer a luz duradora que emana das coisas e não a luz efémera que incide sobre as coisas. “A luz alaranjada das 9 horas, aquela impressão de intervalo, um piano longínquo insistindo nas notas agudas, seu coração batendo apressado de encontro ao calor da manhã e, atrás de tudo, feroz, ameaçador, o silêncio latejando grosso e impalpável.”[8]
Sofia Marçal
[1]Título de um conjunto de tapeçarias francesas. Considerada uma das grandes obras de tapeçaria medieval de Flandres, final do século XV.
[2] Zygmunt Bauman, in: Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, p.37.
[3] Susan Sontag in: A Vontade Radical. A estética do Silêncio, p.12.
[4]Museu Nacional do Traje, Lisboa, 1981/1982.
[5] Hannah Arendt, in: A condição humana, p.250.
[6] Gaston Bachelard, in: A Poética do Espaço, p.234.
[7] Charles Baudelaire, in: As flores do mal, A serpente que dança. A arte de Baudelaire, Marcelo Jaques, p. 41.
[8] Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem, p.41.
Curadoria: Sofia Marçal
Inauguração: 10 de outubro, 17h00 às 20h00
Mais sobre a artista aqui.
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