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Museus e democracia - grupo

Coluna da Diretora | março 2024

Há meses que procuro um pretexto para começar esta coluna, inspirada em algo semelhante no Facebook do Museu Nacional do Rio de Janeiro, assinada pelo meu querido amigo Alexandre Kellner.

Trata-se de uma maneira de estabelecer um contacto mais direto convosco, públicos e amigos do Museu, enquanto vou dando destaque a algumas iniciativas que me parecem ser importantes.

Vou assim aproveitar o Encontro Nacional ‘Museus na Transição para a Democracia, 1974-1990’, que organizámos a 14 e 15 de Março, para começar. Não prometo escrever todas as semanas – vou escrever-vos quando o assunto o justificar.

Este ano é um ano muito especial para Portugal porque se comemoram os 50 anos da democracia. Já começámos a ver debates, conferências, exposições, em múltiplas vertentes. Os museus portugueses também sofreram uma enorme transformação a seguir a 1974 – quer em qualidade quer em número.

Importava assim, neste ano de todos os balanços, perceber melhor a natureza dessa transformação. Há cerca de um ano que reunimos um grupo de pessoas – Graça Filipe, Clara Camacho, Liliana Póvoas e César Lopes – e começámos a trabalhar na organização deste Encontro.

Desde o primeiro momento que nos interessavam os testemunhos, as vivências, as memórias. Convidámos académicos e profissionais de museus de todo país, incluindo as ilhas. Todos vieram, incluindo duas das decanas da museologia portuguesa: Adília Alarcão e Natália Correia Guedes. Foi um prazer enorme estar com elas e ouvi-las.

Todo o Encontro teve uma qualidade excecional, mas eu sublinharia três aspetos.

Em primeiro lugar, as profundas dificuldades iniciais de quem viveu a revolução de Abril no sector da cultura e dos museus: a falta de recursos e de profissionais qualificados, a consciencialização para a importância do património cultural, a necessidade da organização da sociedade civil e os movimentos sociais, entre tantas outras. Como foi repetido tantas vezes naqueles dois dias, a transição dos museus na democracia foi muito longa, e de certa forma ainda está a acontecer.

Em segundo lugar, a natureza verdadeiramente intergeracional do Encontro: no Anfiteatro Manuel Valadares estiveram pessoas de todas as idades, com particular incidência de estudantes. Foi palpável – e muito comovente nalguns momentos – o ambiente de ‘passagem de testemunho’, a responsabilidade e o dever de contar como tudo se passou, com a força que vem da experiência em primeira mão. É uma arma poderosíssima poder dizer que se viu, que se sentiu, que se fez.

O programa pode ser consultado aqui e em breve as intervenções e debates serão disponibilizados no canal YouTube do MUHNAC e também na plataforma Memória para Todos.

Para terminar, deixem-me contar-vos porquê nós, MUHNAC. Na realidade, várias pessoas me perguntaram o que temos nós a ver com o 25 de Abril. Somos um museu científico e este não é um tema científico.

Em primeiro lugar, sou da opinião que qualquer museu tem a responsabilidade e o dever de se envolver, de forma comprometida, nos grandes temas sociais da contemporaneidade.

Em segundo lugar, o MUHNAC tem uma longa história de intervenção social dentro e fora de portas, sobretudo durante a liderança do Professor Galopim de Carvalho, para além, evidentemente, de uma história fortíssima de resistência estudantil ao regime da ditadura, durante o período da Faculdade de Ciências nas nossas instalações.

Em terceiro lugar, a função social do MUHNAC foi recentemente interpelada de forma mais aguda com a entrada das coleções coloniais científicas portuguesas em 2015. Essas coleções obrigaram-nos a repensar a nossa intervenção cultural e social porque a questão colonial não é apenas uma questão do passado mas, e talvez sobretudo, do seu legado no presente.

Finalmente, porque um museu universitário, da Universidade de Lisboa, é sempre por definição um espaço de liberdade e controvérsia, onde todos os públicos, opiniões e perspectivas são bem-vindos e onde tudo se pode e deve questionar e debater.

Para o ano há mais dois encontros. Não sabemos ainda as datas mas um deles aprofundará as questões deste Encontro e outro será dedicado à descolonização.

 

Marta Lourenço, 23 Março, 2024