Exposição “DIVINA TERRA” no Museu Municipal de Alvaiázere com o apoio do MUHNAC
Inaugurou, no dia 14 de junho, no Museu Municipal de Alvaiázere, em Leiria a exposição “Divina Terra" do artista João Marques. A exposição, que teve patente no MUHNAC conta com curadoria da museóloga do Museu, Sofia Marçal.
Uma exposição que se relaciona com dois aspetos fundamentais: o persistir, na investigação artística, de uma certa ideia de Terra, essa matéria obscura que faz nascer, e o modo como essa persistência se dá, como se fosse uma interminável procura pelo sagrado não no alto do céu, mas sim em baixo, na Terra. Tendo em conta estes dois aspetos, a exposição apresenta três partes que pedem de empréstimo o título das três partes que constituem A Divina Comédia de Dante, sendo que o próprio título da exposição é uma referência a essa obra basilar.
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Texto Curadora
O livre arbítrio
A exposição Divina Terra do artista visual João Marques relaciona-se essencialmente com a persistência da ideia de terra na sua investigação artística e da materialização da mesma, essa matéria obscura que faz nascer e o modo como essa persistência se dá, como se fosse uma interminável procura pelo sagrado não no alto do céu, mas sim em baixo, na Terra. A exposição é composta por duas instalações.
Depois da exposição ter sido apresentada no Museu Nacional de História Natural de Universidade de Lisboa, o Museu Municipal de Alvaiázere acolhe a exposição, composta por pinturas que forram as paredes da sala e intitula-se neste país sem olhos e sem boca. É uma homenagem a um poema de Ruy Belo que se chama, Portugal, Sacro-profano, lugar-onde. Analogia que João Marques faz com a exposição, ao assumir a ideia de contestação, de desilusão, de nostalgia. “Arrancadas dolorosamente ao silêncio, emergem as poucas e estéreis palavras de nossa época, como sinais de náufragos, fogos acesos entre colinas longínquas, frágeis e desesperados chamados que o espaço engole.”[1] Este trabalhar a terra, ocupa o campo plástico das obras aqui apresentadas e reflete-se no próprio processo criativo de João Marques.
A apresentação desta exposição neste museu é muito pertinente porque estas pinturas foram feitas com terra queimada sobre placas de madeira, a terra faz de pigmento, terra recolhida nos locais por onde o incêndio passou no concelho de Alvaiázere, em 2022. João Marques juntou cola e água, a terra que tem paus, bugalhos, bolotas, folhas entre outros objetos que arderam recriando assim uma certa similitude com o desalento, e desconforto e o terror do incêndio. “Uma mensagem portadora de um intento. O estilo, as figurações explícitas da mensagem podem ser perversas, podem visar subjugar ou arruinar o recetor. Podem proclamar diretamente, como acontece em Sade, na pintura negra de Goya, na dança mortal de Artaud, a licença sombria do suicídio. Mas a sua pertinência para as questões e consequências de ordem ética só se torna com isso mais sensível.”[2] O facto de utilizar terra queimada verdadeira nas pinturas permitirá estimular outras sensações estéticas para além da visual, a olfativa e a tátil.
A intensidade deste trabalho, a pintura pela pintura, peças queimadas com o maçarico, bocados de terra, do território ardido, de um inferno feito sublime. A primeira vez que o artista utilizou esta técnica foi em 2023, foram apenas experiências, numa perspetiva da exposição como forma de investigação.
João Marques é influenciado pela obra do artista italiano Giuseppe Penone, principalmente no seu trabalho Respirare l´ombra, apresentado em 1999 - 2000, no Centro George Pompidou, em Paris. instalação de folhas que se encontravam dentro de estruturas metálicas que também forravam as paredes.
Outra das referências de João Marques é o pintor e escultor alemão o Anselm Kiefer, como é o exemplo da sua exposição em Veneza na altura da Bienal de 2022, instalação de pinturas site-specific, no Palácio Ducal de Veneza.[3]
“Às vezes acontece que há uma convergência entre os momentos passados e presentes e, à medida que eles se juntam, experimentamos algo dessa quietude no oco de uma onda prestes a quebrar. Originados no passado, mas pertencentes no fundo a algo mais que o passado, tais momentos pertencem tanto ao presente quanto ao passado, e o que eles geram é da maior importância”[4]
Como complemento à exposição João Marques apresenta também desenhos e esboços de preparação para as instalações da exposição no Museu Nacional de História Natural e da Ciência e no Museu Municipal de Alvaiázere.
A ideia de travessia, de viagem, de passagem, no seu significado físico e espiritual, está presente nesta exposição. Esta é-nos dada pelo corredor que integra a outra instalação. A instalação poderia ser, é esse corredor intensamente escuro e que leva a uma caixa de luz, onde se encontra, por fim, uma pequena gravura sobre papel. E a subtil fragilidade desse objeto artístico impõe-se como expectativa de um futuro incerto e não determinado, mas talvez de esperança. “Esse lugar do mundo onde se acredita que viveu a sua dor passada, aquela pretensa dor, apaga-se pouco a pouco de sua memória na sua materialidade”.[5] Esse lugar que se encontra em aberto que o nosso livre arbítrio o dispõe imaginativamente, corporalmente e temporalmente.
Para João Marques esta experiência pessoal é evidenciada pela forma como se relacionam no trabalho desenvolvido, plástico e teórico, os problemas e as questões sobre a terra, o território, o meio natural e a sua relação com o homem. Ainda assim, ao fazê-lo o mundo natural entra em contacto com o cultural, criando uma relação simbiótica entre corpo (humano) e matéria. “O pensamento da imaginação, esse, escolhe também sempre entre duas coisas (pensamento 0/1), mas pode escolher entre duas coisas possíveis (imitando a razão) ou entre uma coisa possível e uma coisa impossível (…) ou então, terceira alternativa: a oposição pode ser entre duas impossíveis.”[6]
Sofia Marçal
Curadora e museóloga do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa
[1] Natalia Ginzburg in: As pequenas virtudes p. 70.
[2] George Steiner, in: Presenças Reais, p.134.
[3]A exposição intitula-se, Anselm Kiefer Questi scritti, quando verranno bruciati, daranno finalmente un po’ di luce (Andrea Emo).
[4] Anselm Kiefer, referente à exposição citada.
[5] Marguerite Duras, in: O deslumbramento, p.31.
[6] Atlas do corpo e da imaginação. Teoria, fragmentos e imagens de Gonçalo M. Tavares p.394.