Data
Local
Exposição da artista plástica HElena Valsecchi
"A necessidade de investigação e experimentação contínuas é um dos aspectos que unem a arte e a ciência. Por esta razão, e devido à localização no antigo Laboratório de Química Analítica, optei por expor uma série de trabalhos in fieri, estudados para a exposição, inícios de séries que me interessa aprofundar, instantâneos do meu processo de trabalho no seu estado atual.
A constante no meu labor artístico dos últimos anos é o desejo contínuo, transversal e perenemente insatisfeito, de transcender os limites do indivíduo, e as suas formas de manifestação, como tentativa de resposta à fragilidade da existência: o antigo Laboratório de Química Analítica leva consigo as marcas do tempo, da sua história e das suas histórias passadas, testemunhos de passagens efémeras. Dialogar com a geologia deste espaço permite-me enriquecer de uma camada adicional as relações invisíveis entre corpos minerais, animais e humanos, entre épocas e geografias, a (re)descoberta de um único corpo invisível, do qual cada existência individual é apenas uma parcial e temporária manifestação.”
HElena Valsecchi
------
A fragilidade do visível
A exposição como forma de investigação é o mote da exposição L’invisibile de HElena Valsecchi, onde tudo é possível e incerto, mas materializado como um processo primário, o início, o princípio, onde a exposição se constrói como experiência laboratorial e a sua apresentação no Laboratório de Química Analítica leva à sua visibilidade pública. “Uma vez que a nossa perceção da realidade depende totalmente da aparência, e portanto da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir da treva da existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina a nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública.”[1] É percetível o posicionamento de procura em relação à pesquisa e à fundamentação praticada pela artista, que resulta numa crítica absoluta e desprovida de qualquer análise previamente condicionada.
A narrativa da exposição estabelece o contacto com o invisível e a possibilidade de interseção de outras manifestações preceptivas. Citando a artista, “o invisível é algo que existe e não pode ser visto. Mas a própria existência de um conceito de invisível, atesta a importância de certos aspetos que, embora não visíveis, existem.” A prova da existência de fenómenos que escapam ao domínio da visibilidade é a perceção destes objetos como artísticos e de uma entrega à criação artística como último reduto.
Nestes objetos artísticos é invisível a sua história, a sua memória como objeto não artístico. Como é o caso da instalação Passagem suspensa no centro da sala, feita por um conjunto de peças em vidro, proveniente de antigas janelas, quebrado por uma ação performativa[2], fundido e novamente quebrado acidentalmente. As peças desenham sombras no chão, que se misturam com os vestígios dos pigmentos de antigas experiências laboratoriais. Aqui as linguagens artísticas e científicas cruzam-se, complementam-se e não perdem a identidade própria de cada domínio. E citando a artista, “tudo é interdependente porque cada coisa/ser é uma manifestação parcial de um corpo global, cujas formas temporais se sucedem, na alternância do latente e do patente.”
Dentro de, a peça instalada na hotte, em vidro soprado com madeira e pelo de cão, apresenta-se suspensa e flutua acompanhada pelas duas peças de som Falésia e Cotopaxi, respirações humana e vulcânica que dialogam aos dois extremos da sala. Citando a artista, “é o sopro que dá forma ao vidro, é o sopro que dá forma a uma vida, é o sopro que tudo une. E o sopro é fluido, como fluido é o meu trabalho, como fluido é o vidro quando aquece. É também esta fluidez que procuro na minha prática: há uma fluidez de pensamento que se traduz numa fluidez também na forma e naquilo que a forma toca.” Em diálogo está a peça Instante de Instantâneo, em vidro soprado colocada na janela.
Dentro das gavetas estão colocados desenhos e esculturas em vidro retroprojetadas em vidro, proveniente de antigas molduras, moldadas no corpo humano e em pedras encontradas pela artista nas suas caminhadas na costa Oeste, assim como os pigmentos provenientes de carvão fóssil e argilas, usados na realização dos desenhos. Em diálogo, no armário em frente, há a peça 5 corpos, um desenho colocado num ramo caído duma árvore. Citando HElena Valsecchi, “Não se vê a origem destes desenhos, que são sobreposições de contactos e gestos. Nascem de um passeio, de uma observação, de um ‘estar com’ um lugar-corpo, do contacto com esse corpo, de o acariciar, de o transformar, de o registar como se fosse um corpo humano, de registar um corpo humano como se fosse pedra, para depois em transparência e sobreposição, trabalhar esse laço invisível.”
Como dimensão simbólica do presente-ausente, a exposição é criada a partir da transformação de objetos de vidro, de marcas de passeios, do fogo, de sons, do tempo…onde a história, as memórias não se perdem, mas ficam invisíveis. “Depositadas no inconsciente da coletividade, tais experiências, interpenetradas pelo novo, geram a utopia que deixa o seu rastro em mil configurações da vida, desde construções duradouras até modas fugazes.”[3] Enquanto numa outra dimensão flui a transformação e nasce a criação artística.
A fluidez que HElena Valsecchi procura no seu trabalho, na escolha dos materiais está intimamente ligada ao fascínio pelo invisível. “A obsessão pelo invisível e a ansiedade da loucura passam por esse esforço de representação do que é por natureza irrepresentável. O invisível também é indizível: todo o esforço dos heróis de Maupassant e do próprio escritor consiste em dar-lhe forma literária.” [4] Maupassant, como HElena Velsecchi dão vida ao invisível, um na literatura e o outo na arte visual.
A poética de HElena Valsecchi materializada no visível e sentida no invisível, questiona e formula com clareza diretrizes para a reflexão deste paradigma da invisibilidade do visível no seu pragmatismo estético. “Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento. E de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade.”[5]
Sofia Marçal
[1] Hannah Arendt, in: A condição humana, p.61.
[2] Documentada pelo link ao qual se pode aceder scaneando o QR-code na folha de sala.
[3]Walter Benjamin, in: Paris, capital do século XIX, p.32.
[4] PONNAU, Gwenhaël – La folie dans la littérature fantastique, p. 305.
[5] Clarice Lispector, in: Água viva, p.11.
Curadoria: Sofia Marçal
Inauguração: 12 dezembro, 18h00 às 20h00