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A arte como cúmplice da esperança
O Museu contemporâneo tem como desafio possibilitar a convivência das várias vertentes do conhecimento científico e artístico e promover o seu cruzamento tão necessário a um público informado em sintonia com o nosso tempo. Com este desígnio a exposição mamaminha de Inês Carrelhas vem ao encontro da linha programática e estratégica do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, onde a realização de exposições de Arte Contemporânea tem como objectivo conquistar novos visitantes, cruzar públicos, criar novas sensibilidades e diluir os terrenos híbridos entre Arte e Ciência.
No Laboratório de Química Analítica o compromisso é da artista com a sociedade, onde os objectos criados cumprem funções específicas de encruzamento com a sua própria experiência. Segundo a Inês Carrelhas, “esta exposição foi pensada e desenvolvido o seu projeto no decorrer de um processo da confirmação, integração, aceitação e cura de um cancro de mama em Janeiro 2018.” A exposição resulta da pesquisa feita pela artista sobre o cancro da mama. Os trabalhos são realizados em materiais têxteis, fios, papel, compressas, gesso e arames de soutiens e é constituída por 5 peças/instalações.
A peça SOMOS TODAS MARIAS consiste num trabalho feito a partir de moldes em gaze de gesso do peito de mulheres operadas e conhecidas da artista que deram o seu prévio consentimento para entrarem neste projecto. Estes trabalhos aproximam-se da realidade vivenciada pela Inês Carrelhas e condensam desejos propiciatórios de esperança. “Ora, a convalescença é como um retorno à infância. O convalescente, tal como a criança, goza, ao mais elevado grau, da faculdade de se interessar vivamente pelas coisas, mesmo por aquelas que são aparentemente mais triviais.” (Charles Baudelaire, in: O pintor da Vida moderna). Como é o desígnio da artista ao realizar esta exposição.
Há trabalhos de artistas plásticos que podem servir de mediação na sociedade. Nesta exposição, a artista constrói uma narrativa que transmite essa cumplicidade como a peça SEI-OS, trabalho feito com 108 novelos de fio de lã envoltos em compressas de não tecido tingidas e os mamilos são caroços de anona, cosidas com botões de madrepérola a fitas de organza, colocando-se estrategicamente na Hotte onde os pigmentos dos azulejos, vestígios do antigo laboratório se confundem com a peça.
O olhar sobre a situação da mulher, e principalmente sobre o seu sofrimento e isolamento está presente no inconsciente da Inês Carrelhas. O trabalho SER, tecido em tear de alto liço com papel tingido, é a materialização desse sentimento, mas também de fé. “Quanto a mim, não posso, dadas as tendências variadas do meu espírito, contentar-me com uma única maneira de pensar. Como poeta e artista sou politeísta, como naturalista, inversamente, sou panteísta, e uma coisa tão decididamente como a outra. Se eu tiver necessidade de um Deus para uma personalidade de ser moral, está tudo preparado para responder também a essa exigência. As coisas do Céu e da Terra são um domínio tão vasto que unicamente os órgãos de todos os seres reunidos são aptos para as envolver.” (Carta de Goethe a Friedrich Heinrich Jacobi, 6 de janeiro de 1813). Nesta peça que privilegia o contágio, tudo se completa e se resume a ser.
Existem duas atitudes que se podem diferenciar na abordagem do fenómeno artístico, uma mais mecânica e outra mais orgânica. A ideia de uma obra orgânica está associada a elementos que são complementares, como é o caso da peça ILUMINAMA com a sua forma circular que nos remete para a ideia do ciclo, do rito, de uma experiencia comum partilhada individualmente. Constituída por um abajur em estrutura metálica enodado a fio de seda utilizando a técnica de macramé, onde nos 8 gomos com cores diferentes estão representas maminhas, não deixa, no entanto, de ser uma peça que ilumina no sentido lato da palavra. A iluminação transmuta-se em piedade: “Piedade é a minha forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo desejo, outro pelo medo. Piedade das coisas que acontecem sem que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha de verão. Estou cansada, agora agudamente! Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, Deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.” (Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem). Há um lado realista na peça que vai ao encontro do lado simbólico, místico de todas as acções que evocam a memória, ou qualquer coisa que está para além da realidade.
A contemporaneidade tem vindo a alcançar um consenso com a arte, com a sua história, com a sua própria memória. Já não é tanto representar essa realidade exterior, essa autoridade do próprio referencial, mas sim dialogar com o próprio mundo. A peça MAMAMINHA que dá título à exposição vem ao encontro dessa anuência. A instalação é composta por 3 painéis de azulejos sobrepostos aos azulejos do laboratório, realizada com arames de soutiens forrados a fios variados que foram sendo executados durante as horas de espera no IPO e aplicados numa base forrada a papel tingido na qual uma mancha é assinalada à máquina. Como nos diz a Inês, “onde parecem 5 cores das 75 mulheres aqui referenciadas, o preto, o branco, o vermelho, o verde e o cor-de-rosa, que representam os 5 graus do cancro”. Como simulação do mamilo, foram colocados botões, eucaliptos e limões. Esta instalação de placas reflecte um espaço interior onde ganha expressão o colectivo em oposição ao individual, e que em última análise remete para tudo aquilo que é mais interessante nas obras de arte, o pensamento e a emoção, onde a passagem do irreal para o real nos valorize e nos faça crescer.
“A mistura de verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que no seu fundo misterioso a vida é há de aparecer-nos nas suas diversas faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos, elas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos. A sabedoria é a vida mesma: o real do viver, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e aceite na sua fascinante e dolorosa totalidade. Não se trata apenas de viver o instante, tarefa inútil, pois a vida é duração. Aquilo que nos é dado dura, e nós dentro dele, com ele, por ele. Não é a flor do instante que nos perfuma, mas o presente eterno do que dura e passa, e não passa.” (José Tolentino Mendonça in: O pequeno caminho das grandes perguntas).
Sofia Marçal
PROGRAMA DE CONVERSAS ONLINE
15 de dezembro
17:00 às 18:00
Conceição Rebelo de Andrade e Carla Malveiro - A fisioterapia e o exercício fazem parte do percurso
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16 de dezembro
16:00 às 17:00
Teresa Mizon - Saberes com sabor a saúde
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17 de dezembro
12:00 às 13:00
Carla Sousa Pinto - Os direitos dos doentes oncológicos
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17 de dezembro
16:00 às 17:00
Ana Rita Bandeira de Melo - De regresso à vida
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21 de dezembro
16:00 às 17:00
Sofia Monteiro e Sofia Reino - Sofias´ Choices: A sustentável força do Ser
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28 de dezembro
16:00 às 17:00
Julia Pessis - Cicatrizes: Poder de regeneração
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29 de dezembro
17:00 às 18:00
Lisa Vicente - A arte e o corpo
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2 de janeiro de 2021
16:00 às 17:30
Isabel Faia - O que diz o meu corpo?
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A EXPOSIÇÃO NOS MEDIA
Programa "Praça da Alegria", RTP1, dia 28 de dezembro 2020
Exposição com o apoio da Liga Portuguesa Contra o Cancro
Inauguração dia 4 de dezembro, às 17h00.