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Exposição de Arte e Ciência

Data

3 Outubro - 3 Novembro 2024

Local

Laboratório de Química Analítica | Museu

Exposição do artista plástico João Gomes Gago

Na exposição o artista cria uma “área cenográfica” onde, através de pinturas, desenhos, objetos encontrados e transformados, e a representação de elementos naturais, evoca uma visão animista. Neste mundus imaginalis, motivos gráficos e dispositivos cénicos exploram as complexas relações cíclicas entre natureza e espírito, transmutando signos em imagens renovadas, onde a distorção se revela como um meio de descoberta.

Curadoria: Sofia Marçal

Inauguração: 2 de outubro, 18h00

 

CONVITE

PROGRAMA ALARGADO

Conversa em torno da exposição - CANCELADA
Data: 30 outubro, 18h00
Entrada livre. 

 

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Cabinet d’Amateur

Quando entramos na sala da exposição Natureza Encenada do artista visual João Gomes Gago, estamos num Gabinete de Curiosidades, como se regressássemos aos primórdios do Museu Nacional de História Natural com as suas primeiras expedições filosóficas de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Brasil no tempo da Rainha D. Maria, que deram origem às primeiras recolhas de objetos desse território. A partir do século XIX, vieram a construir-se todas as coleções de zoologia, botânica e mineralogia do museu.

No Laboratório de Química Analítica, estão expostos desenhos, pinturas, instalações, que permita enfatizar uma correlação entre arte e natureza e objetos da coleção de taxidermia do museu. “O que acho interessante na ligação do meu trabalho com a taxidermia é literalmente ser uma representação da Natureza, assim como a utilização de alguns materiais que se usam na taxidermia na realização dos meus trabalhos.” Como é o caso da cobra colocada na gaveta, ou da ave instalada em posição de voo em diálogo com o desenho do corvo e com a pintura da ave instalada no chão. “Assim somos constrangidos a buscar sempre novas forças, sempre uma nova dureza para contrapor a qualquer realidade. Somos impelidos a buscar uma serenidade interior que não nasce dos tapetes e dos vasos de flor.”[1] As várias camadas de leitura que se podem observar na exposição, do consciente ao inconsciente, são a essência do ato da criação artística de João Gomes Gago.

Esta exposição é um ato de humildade e de inclusão, João Gomes Gago traz para o palco, uma diversidade de outros artistas e pensadores. O artista apropriou-se e também a sua espiritualidade foi apropriada. O seu trabalho, traz uma visão indígena contemporânea, onde a natureza e o espírito são inseparáveis, como é o caso do artista Jaider Esbell, “Sabíamos, pois, sábios éramos. Amávamo-nos sem nem mandar ou exigir, pois era essencial o dito natural. Enquanto dentro, não enxergávamos o fora, embora suspeitássemos de sua força; seguíamos e cá estamos, à frente. Uns de nós sempre trarão reflexos, complexos; é como passam. Atravessamentos constantes, instantes, eternidades.”[2] Na hotte está instalada a peça Máscara, realizada na sequência da sua visita à coleção etnográfica do Museu Nacional de Etnologia, construída a partir de casca de palmeira. Interessam ao artista também o lado espiritual e intimista destas civilizações e a energia que dela advém para si.

João Gomes Gago traz o seu atelier para o Laboratório, com essa aproximação à ciência e com a sua metodologia, a exposição é também um processo de investigação, de procura constante, até à obra final. Citando o artista, “há um momento que resolvo parar este processo de criação e a obra fica acabada. Poderiam ser outros momentos, outras exposições, outras obras, mas é aqui e agora que estamos com estes objetos artísticos.” Tal como Rolando Castellón, João Gomes Gago apropria-se de objetos encontrados. “No espaço expositivo estão depositados apenas fragmentos de um universo extraordinário, que inclui o que ele chama de ‘objetos encontrados’, bem como desenhos feitos com ‘lama’, imagens e composições nas quais o acidental impera. Mas o todo não compõe algo simples ou meramente naturalista.”[3] Como se pode ver na exposição a utilização de panos, de desenhos que se vão abstratizando pontualmente, de pássaros, de cobras, entre outros. No armário estão frascos com pigmentos da Mina de São Domingos em Mértola e materiais de taxidermia que o artista usa nos seus trabalhos.

Franz West também influenciou João Gomes Gago e como nos diz o artista, “na medida em que o seu trabalho lida com a encenação de objetos distorcidos, onde a transformação física sugere uma outra camada de significação e perceção”. O caminho da decisão de encenação é muito importante no trabalho de João Gomes Gago, usa uma abordagem de estética onde as obras exploram os caminhos sempre novos e desdobramentos possíveis da linguagem e de materialização.

A peça instalada no chão da sala Tronco(síntese) remete-nos para a land art, para Richard Long, a sua obra era como caminhar pelo espaço, pelo ambiente, deixar marcas, mesmo que se apaguem com o tempo[4].  Aqui o artista optou por deixar também marcas, vestígios do seu trabalho. esse passeio pela natureza também aconteceu a um nível mais interior, não tanto como observação exterior, mas interior, na sua relação com a espiritualidade, a sua arte é abstrata, mas também psicológica.

Subjacente à exposição está o pensamento de Jung relativamente ao conceito de coincidência, “acontecimentos ‘sincronizados’, além de tudo, quase sempre acompanham as fases cruciais do processo de individuação. No entanto, muitas vezes passam despercebidos quando o indivíduo não aprendeu a observar tais coincidências nem a lhes dar um sentido em relação ao simbolismo dos seus sonhos.”[5] Os trabalhos aqui apresentados construídos a partir de diferentes processos de ação, mas com significados que coincidem, criam uma relação entre o mundo interno e externo.

João Gomes Gago faz referência à obra de Metamorfose do Pássaro Espírito I, Metamorfose do Pássaro Espírito II, e Snake in the Red Moonlight, numa Reinterpretação do Sonho de Morris Graves. O pássaro espírito,

“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena, que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.”[6]


Sofia Marçal

 

[1] Natalia Ginzburg, in: As pequenas virtudes, p.54.

[2] Jaider Esbell, Texto do catálogo da 34ª Bienal de São Paulo, 8 de fevereiro de 2020 a 5 de dezembro de 2021.

[3] rossina cazali, a propósito da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, 6 de setembro a 10 de dezembro de 2023.

[4] Como é o caso da sua obra A line made by walking, de 1967, realizada ainda enquanto aluno na St Martin's School of Art

[5] Carl G. Jung, in: O Homem e os seus símbolos, p. 206.

[6] Edgar Allan Poe, in: O Corvo. Tradução de Fernando Pessoa, P.5.