Data
Local
Exposição do artista João Bragança Gil
Com Beatriz Medori e Curadoria de Sofia Marçal
A apropriação do tempo artificial
Paraísos Artificiais reflete a preocupação social e de interação espacial de João Bragança Gil. O título foi apropriado do poema sinfónico de Luís de Freitas Branco;1 por sua vez apropriado do livro de Charles Baudelaire Paraísos Artificiais2 em resposta a Thomas de Quincey.3 Mais do que uma referência bibliográfica, Paraísos Artificiais procura desconstruir o desejo moderno de exaltação do artifício, enquanto paraíso.
Nesta que é a segunda exposição individual do artista, Bragança Gil habita o espaço museológico do MUHNAC com uma instalação tripartida, organizada entre Paraíso, Paraíso Perdido e Paraísos Artificiais, recuperando simbolicamente a tipologia do espetáculo tecnocientífico: o diorama.
O espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo.4
O diorama Paraíso e o diorama Paraíso Perdido fazem referência a Tabu: A Story of the South Seas, o último filme realizado por Murnau5, em 1931. Esta película, que foi realizada no Haiti, está dividida em duas partes que intitulam estes primeiros dois dioramas, um gesto apropriado também por Miguel Gomes em Tabu (2012).
A repetição deste gesto surge aqui como alusão ao cinema, a expressão artística do tempo ‘falsificado’, mas também produtora e difusora de imaginários exóticos e tropicais.
No Paraíso de João Bragança Gil, a referência ao cinema também aparece de forma sonora. Em Sonoplastia [Kookaburra] (2023), duas colunas de Surround — técnica sonora imersiva difundida pelo cinema — emitem o som da ave Kookaburra que, embora só exista praticamente na Austrália, foi recorrentemente utilizado como sonoplastia de produções de Hollywood para simular ambientes genericamente tropicais. No mesmo diorama, Relatório de Condição (2023) é uma composição de quatro imagens lenticulares que comparam fotografias de Mário Novais6 no Jardim Botânico Tropical de Belém — após a Exposição do Mundo Português de 1940 —com fotografias do artista capturadas no Parque das Nações. Ainda neste diorama, encontramos Sem Escape (2023); sobre um servidor de computador, utilizado para captação e gravação de vídeo, assistimos a uma cena de perseguição de um carro a um conjunto de zebras que fogem, num paralelismo entre a captação fotográfica e a violenta perseguição. Por último, surge num plinto a pele de gato selvagem embalada para conservação [UL-IICT-MAM-42/009], tendo sido capturada numa missão colonial e científica, posteriormente depositada em arquivo e aqui reposicionada; um registo do registo.
O diorama Paraíso Perdido, apropriação do título do livro de John Milton7 inclui uma representação de Dodô [MNHNC.MOD: 000127], construída por Pedro Andrade, taxidermista do museu, baseada na ideia imaginada deste animal, extinto pela mão humana. Uma representação tangencial à ideia de fição remetendo para a reprodução da obsolescência, decadência e ruína.
Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca do tempo perdido, quer ‘suspender’ o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso.8 De seguida, em Ruínas e Raízes (2023), Bragança Gil apresenta-nos uma fotografia tirada no Jardim da Estrela, em Lisboa, de uma árvore que segundo o artista, cresceu à volta de uma ruína. No chão, Ficção Científica (2023) representa a obsolescência tecnológica, mas também autobiográfica. Duas colunas de som com detalhes futuristas, em voga nos anos 90, transportam-nos para o universo do Sci-Fi. Estas, ligadas a um leitor de MP3, produzem o som de uma gravação feita por Bragança Gil no Oceanário de Lisboa, onde altifalantes emitem a simulação de uma paisagem sonora.
Por último, Paraísos Artificiais surge ao fundo da sala, mediando a relação entre os dioramas. Neste diorama, som e vídeo articulam-se de uma forma assíncrona para criar durações e leituras indefinidas no espaço. A peça sonora, tem a duração de uma hora e cinquenta minutos. Partindo do poema sinfónico de Luís de Freitas Branco de 1913, considerado como o “introdutor do modernismo em Portugal”9, João Bragança Gil trabalha a música dentro da música, desconstruindo-a e manipulando-a digitalmente, estendendo o tempo.
Por sua vez, a projeção de vídeo regista a exposição Magical Garden, um evento pseudocultural que habitou o Jardim Botânico Tropical em 2021, durante o processo de investigação do artista e da investigadora Beatriz Medori. O filme desenrola-se numa sucessão de plantas iluminadas por cores diversas, esculturas ficionais, e dispositivos técnicos utilizados na exposição, produzindo imagens aparentemente sedutoras, que não deixam de confirmar o poder da ilusão na simulação destes territórios romantizados. Entre a folhagem, o espetáculo: a ciência e o entretenimento.
No plano que recomeça o loop, uma bola de espelhos remete para o tempo circular; o tempo do Jardim Botânico Tropical que, desde 1940 até hoje, é utilizado para uma série de eventos e de exposições de simulação dos imaginários exóticos aqui problematizados.
Livrar-se de si mesmo onde quer que seja, não se colocar nos protagonistas do seu romance, renunciar a si próprio nem que seja por meia hora.10
Paraísos Artificiais questiona uma ideia implícita de modernidade, aqui desconstruída. Tempos históricos distintos e anacrónicos, encontram-se e cruzam-se no espaço da exposição, onde a narrativa se estrutura numa trama de referências, deslocações e reposicionamentos. Acreditamos que esta exposição seja também alvo de apropriação.
1. Compositor português (1890-1955). Paraísos Artificiais de 1910. Foi o primeiro compositor modernista português. Foi subdiretor do Conservatório Nacional.
2. Livro publicado em 1860.
3. The Confessions of an English Opium-Eater, 1862. Escritor inglês, (1785-1859).
4. Guy Debord, A sociedade do espetáculo, 2012, p.127.
5. Friedrich Wilhelm Murnau, realizador alemão do movimento expressionista, Kammerspiel (1888-1931).
6. Fotógrafo português (1899-1967), principal responsável pela cobertura fotográfica da Exposição do Mundo Português (1940), bem como de diversas iniciativas de propaganda do Estado Novo.
7. John Milton, poeta inglês (1608-1674).
8. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, 1993, p. 202.
9. Rui Pereira, Paraísos Artificiais (2013), www.casadamusica.com (Consultado em 12/04/2023)
10. Anton Tchékhov, Sem trama e sem final (99 conselhos de escrita), 2019, p.37
Curadoria: Sofia Marçal
Contactos:
www.joao-gil.com
j@joao-gil.com
instagram.com/joaobgil
Apoios:
República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes
Universidade de Lisboa / Museu Nacional de História Natural e da Ciência
CIUHCT : Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia
Objeta - Produção de Arte
Casa Santos Lima