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Exposição de Arte e Ciência

Data

15 Abril - 28 Maio 2023

Local

Laboratório de Química Analítica | Museu Nacional de História Natural e da Ciência

Exposição da artista plástica Carla Cabanas

 

Retrato do artista quando jovem1

A artista plástica Carla Cabanas apresenta duas exposições no museu; a exposição A Bao A Qu que se realiza no Laboratório de Química Analítica e na sala dos minerais a exposição Álbum de Família1.

O título da exposição A Bao A Qu foi inspirado na obra literária O Livro dos Seres Imaginários de Jorge Luis Borges. Um livro onde o autor enumera e descreve diversas criaturas fantásticas criadas ao longo dos tempos através de lendas, mitos e religiões.

A Bao A Qu, aqui materializado por Carla Cabanas, é uma personagem do livro, um ser imaginário, emocionalmente sensível que só atinge a sua forma plena quando alguém percorre um caminho de crescimento individual, passando por várias etapas até atingir a sua maturidade espiritual.

“Para contemplar a paisagem mais maravilhosa do mundo, é preciso chegar ao último andar da Torre da Vitória, em Chitor. Existe aí um terraço circular que permite dominar todo o horizonte. Uma escada em caracol leva ao terraço, mas só se atrevem a subir aqueles que não creem na fábula, que diz assim: “Nas escadas da Torre da Vitória vive desde o princípio dos tempos o A Bao A Qu, sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só goza de vida consciente quando alguém sobe as escadas. A vibração da pessoa que se aproxima infunde-lhe vida, e uma luz interior insinua-se nele. Ao mesmo tempo, o seu corpo e a sua pele quase translúcida começam a mover-se. Quando alguém sobe as escadas, o A Bao A Qu coloca-se quase nos calcanhares do visitante e sobe prendendo-se no rebordo dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. Em cada degrau a sua cor intensifica-se, a sua forma aperfeiçoa- se e a luz que irradia é cada vez mais brilhante. Testemunho da sua sensibilidade é o facto de só adquirir a forma perfeita no último degrau, quando aquele que sobe é um ser evoluído espiritualmente. Se assim não for, o A Bao A Qu fica como que paralisado antes de chegar, o seu corpo fica incompleto, a sua cor indefinida e a luz vacilante. O A Bao A Qu sofre quando não pode formar-se totalmente e a sua queixa é um rumor quase impercetível, semelhante ao toque da seda. Mas quando o homem ou a mulher que o fazem reviver estão cheios de pureza, o A Bao A Qu pode chegar ao último degrau já completamente formado e irradiando uma luz azul viva. O seu regresso à vida é muito breve pois, quando o peregrino desce, o A Bao A Qu rola e cai até ao degrau inicial onde, já apagado e semelhante a uma lâmina de vagos contornos, espera o próximo visitante. Só é possível vê-lo bem quando chega a meio das escadas, onde os prolongamentos do seu corpo, que ao jeito de bracinhos o ajudam a subir, se definem com clareza. Há quem diga que ele olha com o corpo todo e que, ao tato, faz lembrar a casca do pêssego. No decurso dos séculos, o A Bao A Qu só chegou uma vez à perfeição.”2

A escultura A Bao A Qu é construída por fotografias da artista, enquanto criança, como metáfora do seu crescimento, utilizando-as como material, dando-lhes visibilidade e transferindo-as para o ambiente público. Instalada ao centro do laboratório é uma alegoria do percurso de crescimento pessoal da artista que aspira chegar ao topo da torre e “contemplar a paisagem mais maravilhosa do mundo”. Para este processo se tornar consciente revive as suas etapas onde os degraus são sinuosos e cheios de escamas. O lado avesso das fotografias que compõem esta escultura é revestido a folha de ouro remetendo-nos para o restauro japonês Kintsugi que a artista usou em trabalhos anteriores. Kintsugi é uma técnica centenária de reparação de cerâmica onde as fissuras da peça partida depois de coladas são posteriormente cobertas com ouro, tornando estas marcas mais evidentes e dando valor às falhas e mudanças físicas causadas pelo tempo ou por acidentes.

A Bao A Qu questiona o papel da fotografia de família na construção das nossas memórias e consequentemente da nossa identidade. Nas palavras de Sigmund Freud: “Talvez nos devêssemos limitar a dizer que o passado pode manter-se conservado na vida mental, mas não tem necessariamente de ser destruído. É sempre possível que mesmo na mente algumas ocorrências antigas – por regra ou como exceção – tenham sido de tal modo absorvidas ou mesmo apagadas que já nenhum processo as poderá reconstituir ou fazer reviver, ou que a conservação dependa no geral de condições favoráveis. É possível, mas sobre isso nada sabemos. Podemos apenas constatar que a conservação do passado na vida mental é mais a regra e menos uma exceção insólita.“3

A relação antagónica de expor no Museu Nacional de História Natural e da Ciência um ser que não existe, nem existiu, ao criar-se um ser imaginário e imaterial, contraria o objetivo e o princípio das coleções naturalistas.

Carla Cabanas, desafia-se como pessoa e também como artista plástica, na sua procura incessante de novos estímulos que se materializam em objetos artísticos.

As duas exposições de Carla Cabanas agora apresentadas no museu, contrastam entre si, a peça Álbum de Família está inserida num contexto museológico e museográfico, convivendo com os minerais, numa sala escura.  A peça A Bao A Qu instalada no Laboratório de Química Analítica, peça única, numa sala branca e asséptica sem coleções naturalistas envolvidas.

 

Curadoria: Sofia Marçal

1 - Título do livro de James Joyce.
2 - Jorge Luis Borges, in: O Livro dos Seres Imaginários, p.5 e 6.
3 - Sigmund Freud, in: O mal-estar na civilização, p.19