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Exposição do artista plástico Xavier Ovídio
Paraíso Perdido [1]
«De volta à Alameda e ao ritmo citadino. O ruído aqui é de motores de carros, motas e sirenes de ambulâncias. Ouve-se também a Fonte como pano de fundo. Os cigarros sabem mal, mas fumo-os. O café também era dispensável. Tentarei combater esses vícios. As gaivotas e pombos lutam por comida no relvado extenso e as pessoas caminham como se fosse domingo. Está sol, apesar do vento frio.»
Xavier Ovidio, apontamento dos Cadernos do Nada Sobre Tudo, aquando do regresso da viagem a S.Tome 5 Dez 2019
A Exposição Notes on Perception do artista visual Xavier Ovídio, realiza-se num antigo laboratório de geologia, o Laboratório dos Pirotécnicos e apresenta-se em dois atos.
Na 1ª sala, A Floresta, onde estão duas pinturas instaladas que remetem para uma floresta suspensa, dispostas cenograficamente e em diálogo com a pintura colocada fora da sala. “Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não se podem separar nem se encarar.”[2]
Ainda na mesma sala estão dispostas três esculturas/estruturas construídas com material proveniente da reciclagem de resíduos de plásticos urbanos simulando madeira.[3] Esculturas em início de construção, onde estão instaladas “pautas” de sons de aves. Citando o artista “é uma coisa empírica, sou eu que escuto as aves e intuitivamente desenho, sigo ao ritmo da minha pincelada, do meu traço. No fundo é um combo entre a escultura e o desenho, sendo o desenho a partitura das aves.” Numa ironia na sua relação com a peça de som City Birds que se ouve na outra sala.
As pinturas, foram realizadas a partir de fotografias de viagens: uma durante o Caminho de Santiago, a outra no Brasil e a que está fora da sala em São Tomé. Com esta disposição cenográfica o artista pretende realçar a importância do movimento no espaço de exposição, em contraponto com a estagnação desse movimento, nos momentos nos quais fez os registros das aves, são elementos estanques, mas que transportam memória.
“O mundo de uma obra de arte é ‘irreal’, no sentido real da palavra: é uma realidade fictícia. Mas é ‘irreal’ não porque seja inferior em relação à realidade existente, mas porque lhe é superior e qualitativamente ‘diferente’.”[4]
Xavier Ovídio tem como referência George Perec, que fez um registo diário de 3 dias na Praça de Saint-Sulpice, onde registou tudo o que se passava à sua volta[5].
Citando Javier Ovídeo, “na exposição estão pinturas de viagens, partituras com a descrição do momento, estruturas-esculturas que fazem parte do meu trabalho complementar ao artístico, material que vem do meu quotidiano de trabalho e ainda o som da cidade de Lisboa”. Em suma, o registo do seu quotidiano. Na sequência da visita ao laboratório de taxidermia foi selecionada uma ave,[6] que é o único elemento “real” da exposição.
Na segunda sala, está instalada a peça sonora imersiva, City Birds, um trabalho de recolha e composição de sons de “aves” da cidade. Citando Xavier Ovídeo, diversos alarmes sonoros citadinos que, através de corte e colagem, se metamorfoseiam recriando o ambiente de uma floresta tropical. Há o lado do quotidiano, na peça de som que enche o espaço, sons da Alameda, lugar onde eu vivo. Ambulâncias, trotinetas buzinas e poluição sonora digital. Mas que de uma forma poética transformo numa floresta de aves.” O diálogo/confronto entre a peça sonora e as peças visuais.
Os trabalhos aqui apresentados têm essencialmente a ver com a perceção. Quando olhamos de um determinado ponto as obras não ficam contidas no espaço do museu, há uma nítida dilatação do espaço e do tempo. Mas, no fim verificamos que estamos num cenário. “O real é um tecido sólido, ele não espera os nossos juízos para anexar a si os fenómenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.”[7]
O Xavier Ovídio observa o mundo atentamente e isso revela se no seu processo artístico. Absorve o que o natural/urbano lhe oferece em cada experiência e transformá-a. Apropriou-se desses sons de “aves”, materializou-os e criou umas das vertentes da sua linguagem artística. “A essência inteira da linguagem concentra-se nessa palavra singular (ser). Sem ela tudo teria permanecido silencioso, e os homens, como alguns animais, poderiam certamente fazer uso de sua voz, mas nenhum desses gritos lançados na floresta jamais teria articulado a grande cadeia da linguagem.”[8]
Citando o artista, esta exposição é uma simulação da experiência que mostra um simulacro da cidade. Temos o som de aves que não são aves, sons digitais da cidade elaborados de forma a que se assemelham a uma floresta com aves. Temos a representação pictórica de uma floresta, mas não é a floresta. É o meu lado de experiência como simulacro.” Aqui também se pretende simular a percepção das diferentes formas físicas da cidade, a influência dos seus sons na percepção e leitura dos elementos pictóricos artísticos, que se iriam transformar ao longo do tempo.
O rasto dos visitantes ficará registado na sala, onde as suas pegadas se assemelham aos artistas de Land Art, como Richard Long caminhou pelo espaço, pelo ambiente para deixar as suas marcas criando a peça A Line Made by Walking. Simulacro ou paralelismo de um paraíso perdido.
Sofia Marçal
1Appropriation of the title of the book by John Milton, English poet (1608-1674).
2 Italo Calvino, The Invisible Cities, p.44.
3 Xavier Ovídio was inspired to build these by the exhibition Before The Storm by Danh Vo, at the Paris
Bourse in 2023.
4 Herbert Marcuse, The Aesthetic Dimension, p.53.
5 Book Tentative D'Epuisement D'Un Lieu Parisien, 1975.
6 Nymphicus holandicus, MB 52 - 0000064, Bocage Museum.
7 Merleau Ponty, Phenomenology of Perception, p.6.
8 Michel Foucault, The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences. p.113
Lost Paradise 1
«Back to Alameda and to the rhythm of the city. The noise here comes from car engines, motorbikes and ambulance sirens. I can hear the Fountain in the background. Cigarettes taste bad, but I smoke them. Coffee was also dispensable. I’ll try to fight these vices. Seagulls and pigeons fight for food on the expansive lawn and people walk as if it were Sunday. It’s sunny, despite the cold wind.»
Xavier Ovidio, note from the Notebooks of Nothing About Everything, on his return from his S.Tome trip, 5 Dec 2019
The exhibition Notes on Perception by the visual artist Xavier Ovídio takes place in a former geological laboratory, “O Laboratório dos Pirotécnicos”, and is presented in two acts. In the first room, there are two paintings that refer to a suspended forest, arranged scenographically and in dialogue with the painting outside the room. «From one part to the other, the city seems to continue, in perspective, multiplying its repertory of images: but instead it has no thickness, it consists only of a face and an obverse, like a sheet of paper, with a figure on either side, which can neither be separated nor look at each other.”
In the same room there are three sculptures/structures built from the recycling of urban plastic waste, with materials simulating wood.3 These are sculptures in the early stages of construction, in which “scores” of bird sounds are installed. In Ovídio’s words this work is “an empirical thing, I listen to the birds and intuitively draw, I follow their rhythm with my brushstroke, with the route I am drawing. Basically it’s a combination of sculpture and drawing, the drawing being the score of the birds.» In an ironic relation to the sound piece City Birds that can be heard in the other room.
The paintings were made from travel photographs: one during the Caminho de Santiago, the other in Brazil and the one outside the room in São Tomé. With this scenographic arrangement, the artist wants to emphasize the importance of movement in the exhibition space, as opposed to the stagnation of that movement in the moments in which he recorded the birds; they are elements of pause, but they carry memory. «The world of a work of art is ‘unreal’ in the real sense of the word. It is a fictitious reality. But it is ‘unreal’ not because it is inferior to existing reality, but because it is superior to it and qualitatively ‘different’.» 4
Xavier Ovídio points to George Perec, who kept a daily record of three days in the Place de Saint-Sulpice, where he recorded everything that was happening around him 5, when discussing his exhibition. As Xavier says, “in the exhibition there are paintings of journeys, scores describing the moment, sculpture-structures that are part of my work that complements the artistic work, material that comes from my daily work and also the sound of the city of Lisbon”. In short, a record of his daily life. Following the visit to the taxidermy laboratory, a bird was selected, 6 which is the only “real” element in the exhibition.
In the second room, the immersive sound piece City Birds is installed, a work of collecting and composing the sounds of the city’s «birds». As Xavier says, “various city sound alarms which, through cutting and pasting, are metamorphosed to recreate the atmosphere of a tropical forest. There’s the everyday side, in the sound piece that fills the space, sounds from Alameda, where I live. Ambulances, scooters, horns and digital noise pollution. But in a poetic way I transformed it into a forest
of birds.»
The works presented here are essentially about perception. When we look from a certain point, the works are not contained in the museum space, there is a clear dilation of space and time. But, in the end, we see that we are in a setting.
«The real is a solid fabric, it doesn’t wait for our judgments to attach the most aberrant phenomena to it, nor to reject our most credible imaginings. Perception is not a science of the world, it is not even an act, a deliberate taking of a position; it is the background against which all acts stand out and it is presupposed by them.» (7)
For Xavier Ovídio, his purpose is attentive observation and his artistic process is to understand what the natural/urban offers him in each experience and to transform it. He appropriated these «bird» sounds, materializing them as part of his artistic language.
«The whole essence of language is concentrated in that singular word (to be). Without it everything would have remained silent, and men, like some animals, could certainly make use of their voice, but none of these cries launched into the forest would ever have articulated the great chain of language.» (8)
To quote the artist, “this exhibition is a simulation of the experience that shows a simulacrum of the city. We have the sound of birds that are not birds, digital sounds of the city elaborated in such a way that they resemble a forest with birds. We have a pictorial representation of a forest, but it’s not the forest. It’s my side of the experience as a simulacrum.» The aim here is also to simulate the perception of the different physical forms of the city, the influence of its sounds on the perception and reading of the artistic pictorial elements, which would change over time.
Visitors’ footprints will be recorded in the room, where they will resemble those of Land Art artists, as Richard Long walked through the space, through the environment to leave his mark, creating the piece A Line Made by Walking. A simulacrum or parallel of a lost paradise.
Sofia Marçal
[1] Apropriação do título do livro de John Milton, poeta inglês (1608-1674).
[2] Italo Calvino, in: As cidades Invisíveis, p.44.
[3] Xavier Ovídeo inspirou-se na construção destas na exposição Before The Storm de Danh Vo, na Bolsa do Comércio de Paris, em 2023.
[4] Herbert Marcuse, in: A Dimensão Estética, p.53.
[5] Livro Tentative D'Epuisement D'Un Lieu Parisien, 1975.
[6] Nymphicus holandicus, MB 52 – 0000064, Museu Bocage.
[7] Merleau Ponty, in: Fenomenologia da Percepção, p.6.
[8] Michel Foucault in: As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. p.113.
Curadoria: Sofia Marçal
Inauguração: 9 novembro, 18h00 às 20h00
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