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No princípio era o verbo, no princípio é a imaginação
A exposição (0/1) o zero e o um, apresenta-se em vários locais do Museu Nacional de História Natural e da Ciência: no Átrio, no Anfiteatro do Laboratorio de Chimica, no Claustro, no Laboratório de Química Analítica e no Corredor da Geologia. O tema da exposição é baseado no livro, Atlas do corpo e da imaginação. Teoria, fragmentos e imagens de Gonçalo M. Tavares. “Digamos que, por mais possibilidades que a imaginação possa ter, o seu último lance é reduzir as infinitas possibilidades a duas e, de entre estas duas, por fim, escolher uma. Só assim a imaginação pode passar para o exterior, pois no exterior não há tempos duplos. Podemos fazer uma coisa e depois o seu oposto, mas não podemos ao mesmo tempo fazer uma coisa e o seu oposto.” [1] Aqui os artistas vão habitar o espaço com os seus trabalhos, trabalhos esses que contribuem para se ir fazendo um caminho como um percurso inacabado. “Marcar uma certa linha num certo instante não permita a previsão certeira do próximo passo.”[2]
Artistas com percursos e formação distintos, alguns trabalhos que se cruzam, outros que se completam e ainda outros que seguem caminhos paralelos, mas todos perseguem o conceito da materialização, da corporização. “Uma casa habitada deixa de ser um espaço para passar a ser aquilo que rodeia um corpo.”[3] Trabalhos artísticos que ocupam e se inscrevem-se neste espaço museológico e inexoravelmente apenas se concretizam quando a ideia, o conceito se materializa.
Citando a galerista Mercedes Cerón, promotora da exposição, “(0/1) o zero e o um, reflete sobre a imaginação e os conceitos de oposição, a arbitrariedade da interpretação e sobre a qual, a imaginação se foca através da representação da realidade ou dos objetos e não da coisa em si. A variedade de enunciados, reproduzindo metáforas multiplicando as possibilidades de verdade – uma espécie de ciência momentânea.”
ARTURO COMAS (Sevilha, 1982) Claustro e Átrio
Arturo Comas idealizou estas esculturas depois de visitar o Museu, onde se confrontou com um conjunto de cadeiras portuguesas no claustro, no mesmo local onde apresenta as suas ‘cadeiras’. “O silêncio das cadeiras imóveis e finas comunicou-se ao seu cérebro, esvaziou-o lentamente...”[4] Com estes trabalhos escultóricos apropria-se do objeto e remete-nos para a cadeira criada na década de 1940, pelo designer português Gonzalo Rodrigues dos Santos.
O absurdo e a inutilidade destes trabalhos conferem-lhes o estatuto de objeto de arte, “a cadeira que está aí em frente é um objeto. Inútil enquanto eu a olho.”[5] É uma estratégia de escolha estética, o que justifica em termos visuais e em termos de percepção a própria razão do objecto.
JOÃO MOTTA GUEDES (Lisboa, 1995) Anfiteatro do Laboratorio Chimico
A peça artística de João Motta Guedes é um néon, com a inscrição, This sign is an act of love. O azul é a cor da peça, o azul significa a liberdade. Peça contraditória, uma vez que a inscrição evoca o amor. A simbologia da cor azul remete-nos para o filme de Krzysztof Kieslowski, “O homem sempre viveu o mito do amor. Para muitos, amar significa renunciar à liberdade”.[6]
O trabalho é tão forte que é mais do que visual, também é sonoro, dado que nos ativa esse sentido. “O que na imagem é anamorfose, manipulação da sua integridade formal, constitui-se justamente na sua conversão morfológica a algo que se assemelha à natureza constitutiva do som, que só se estrutura na medida mesma em que são geradas interferências nos seus parâmetros e valores de intensidade, altura, duração e timbre”.
Este objeto artístico não é para ser transacionado, mas para circular, só pode estar no máximo um ano com o mesmo proprietário. Evoca-nos para o desprendimento da Arte, sugerindo-nos que Arte não é de ninguém, mas sim de todos.
JON GOROSPE (Vitoria, 1986) Átrio
A instalação The Observers, série da obra Polished Cities esteve exposta no Guggenheim de Bilbao em julho deste ano. É composta por impressões retro iluminadas e é ativada por sensores que detetam movimento e accionam os painéis de luz. “Hoje tornou-se banal evocar o conceito duma cultura da imagem, mas a verdade é que esta afirmação traduz a sensação que todos temos de viver num mundo onde as imagens estão não só a proliferar, mas a tornarem-se crescentemente variadas e intermutáveis.”[7]
Instalação fotográfica composta por selfies tiradas no mesmo local. Fotografias isoladas e descontextualizadas e sem escala, os seus gestos comuns e estranhos, são registados como se tivessem sido captados a partir de uma perspectiva simulada de câmaras de vigilância. “O amante da vida universal entra assim na multidão como num imenso reservatório de eletricidade. Pode-se também compará-lo, ele mesmo, a um espelho tão imenso quanto esta multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, em cada um dos seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça móvel de todos os seus elementos. É um eu insaciável do não-eu que, a cada instante, o manifesta e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia.”[8] Cada instante fotográfico, cada selfie, cada eu, são fictícios ou reais?
MARTIM BRION (Lisboa, 1986) Corredor da geologia
A instalação Form Macabre é composta por 18 trabalhos fotográficos, onde a geometria, as cores, as formas se destacam e o cotidiano na sua plenitude nos está velado. “Mas o verdadeiro armário não é um móvel cotidiano. Não se abre todos os dias. Assim, a chave de uma alma que não se confia não está na porta.”[9] Martim Brion relaciona as fotografias temporal, artística e emocionalmente num ambiente urbano. A relevância no seu processo de visualização é o que caracteriza estes trabalhos no seu todo e cria heterogeneidade e significado.
A parede do corredor fica preenchida com estas fotografias, pequenas narrativas, histórias, que podem ter leituras lineares ou cruzadas, criando-se analogias. Não há propriamente uma narrativa, mas há um diálogo entre as imagens, destes fragmentos do cotidiano. A ideia de morte também está presente. “O amor e a morte — Os dois personagens principais desta história sem trama nem desfecho, mas que condensa a maior parte do som e da fúria da vida — admitem, mais que quaisquer outros, esse tipo de devaneio/escrita/leitura.[10] Os cruzamentos, interações e transferências entre imagens têm-se tornado cada vez mais complexos no trabalho de Martim Brion.
SUSANA ROCHA (Braga, 1988) TERESA MURTA (Lisboa, 1993) Laboratório de Química Analítica
Nesta sala, antigo Laboratório de Química Analítica são apresentados trabalhos de duas artistas plásticas, Susana Rocha e Teresa Murta. A Susana com objectos e a Teresa com pinturas. São trabalhos diferentes, mas o conceito e a ideia cruzam-se e encontram-se. “E sabendo principalmente que a terra em baixo dos pés era tão profunda e tão secreta que não havia a temer a invasão do entendimento dissolvendo seu mistério. Tinha uma qualidade de glória esta sensação. ”[11] A ousadia e o entendimento entre estas artistas resulta numa exposição com harmonia visual e consistente.
Susana Rocha ao colocar na exposição objectos do dia-a-dia, mesmo que trabalhados artisticamente para se transformarem em objectos de arte, pretende evocar o discurso e a experiência da memória, como um escape para amnésia. “A casa habitada por cheiros e gestos torna-se um caso mais amplo, uma velha roupa que já conhece, prevê e protege os nossos movimentos.”[12] Estes objectos artísticos realçam a dicotomia orgânico/industrial, explorando transmutações possíveis entre elementos funcionais e materiais orgânicos. Os objectos aqui apesentados são a continuação do eu da artista, “O nosso presente sentimento do eu é assim apenas o resquício definhado de um sentimento de longe mais amplo, na verdade, de um sentimento que tudo abarca e ao qual corresponde uma união mais íntima do eu com o mundo que o rodeia.”[13]
O trabalho de Teresa Murta também incide sobre a memória, memórias da sua infância, das suas visitas ao laboratório de investigação do Jardim Botânico, criativas e ingénuas, mas inspiradoras, acompanhada pela sua avó Cecília Loff Sérgio, investigadora da Universidade de Lisboa nas suas tardes de trabalho no museu.
As referências visuais de Teresa Murta vão desde a mão que colhe a amostra à lente do microscópio. ”Como pode a arte falar a linguagem de uma experiência radicalmente diferente? Como pode a arte invocar imagens e necessidades de libertação que penetram na profunda dimensão da existência humana.”[14] Este percurso efetuado pela artista no espaço e no tempo, geram pinturas fantásticas e por vezes absurdas onde a seleção de elementos e referências se intersectam e fazem coincidir a perceção da pintura com a processamento da memória.
A narrativa visual e estética não acaba enquanto a sua idealização e imaginação deixar de se materializar. “Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. É de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos.”[15]. No princípio era o verbo, no princípio é a imaginação.
Sofia Marçal
[1] Gonçalo M. Tavares, in: Atlas do corpo e da imaginação. Teoria, fragmentos e imagens de, p.395.
[2] Ob. cit, Gonçalo M. Tavares, p.31.
[3] Ob. cit, Gonçalo M. Tavares, p.414.
[4] Clarice Lispector, in: Perto do Coração Selvagem, p.31.
[5] Clarice Lispector, in: Água Viva, p.38.
[6] Azul, é o primeiro filme da trilogia, Três Cores do realizador polaco, Krzysztof Kieslowski, 1993.
[7] Jacques Aumont, in: A Imagem.
[8] Charles Baudelaire, in: O pintor da vida moderna, p.20.
[9] Gaston Bachelard, in: A Poética do Espaço, p.66
[10] Zygmunt Bauman, in: Amor liquido – Sobre a Fragilidade dos laços humanos, p. 15
[11] Clarice Lispector, in Perto do Coração Selvagem, p.23.
[12] Ob. cit, Gonçalo M. Tavares, p.414.
[13] Sigmund Freud In: O Mal-Estar na Civilização, p. 14.
[14] Herbert Marcuse, in: A Dimensão Estética, p.43.
[15] Walter Benjamim, in: A Obra de Arte na era da sua reprodutibilidade técnica, p.1.
Curadoria: Sofia Marçal
Inauguração: 3 de novembro, das 18h00 às 20h00